quarta-feira, 6 de maio de 2015

Quanto vale o nosso parto


Algumas pessoas tem dificuldade para compreender porque tenho me dedicado tanto para pagar uma equipe humanizada para o meu parto se tenho plano de saúde privado e o SUS. A seguir você encontra os principais motivos que me levaram a empreender toda minha energia para conseguir pagar minha equipe e espero que esse texto fique de motivação para quem acha que não pode ter um parto humanizado porque não tem dinheiro.

O contexto
Nós estávamos desempregados, em meio à concretização de um planejamento de seis meses de mudança de cidade, no qual sabíamos que teríamos privações materiais. Diferentemente da primeira gravidez, a qual foi bastante planejada e esperada por sete meses, essa gravidez aconteceu por um descuido. Então, nossas reservas já tinham sido planejadas para serem utilizadas para nossa mudança. Um parto não caberia no que tínhamos planejado... Como tínhamos tido uma experiência ruim no primeiro nascimento, correr o risco de passar por tudo de novo era inaceitável. A gente estava com os dois pés fora da matrix. Parir no convênio não era uma opção. No SUS uma possibilidade.

A realidade da assistência privada
Ter um plano de saúde e querer parir não são coisas que podem ser somadas no Brasil. Na verdade, a rede privada tem umíndice de cesarianas de 83%, chegando a muito perto de 98% em algumasmaternidades. Funciona mais ou menos assim:
            Opção 1: ou você encontra um obstetra que de cara vai marcar sua cesárea, a conhecida cesárea eletiva. Talvez até digam que parto normal não existe mais, que as mulheres não precisam passar mais por isso (oh god).  São os obstetras cesaristas. Falam na cara que não acompanham parto normal (humanizado então, nem se fala).
            Opção 2.2: ou você encontra um obstetra fofinho. Aquele que vai te dizer que acompanha parto normal SE tudo der certo. Mas ao longo do pré-natal (aquele que você vai esperar 3 horas pra uma consulta de 10 minutos) ele vai conseguir minar sua coragem ou até mesmo encontrar mil motivos médicos (que não são baseados em evidências científicas, como circular de cordão, bebê pélvico, não ter passagem entre outros mitos) pra marcar a cesariana ou mesmo fazer o procedimento assim que você der o primeiro sinal de trabalho de parto.
            Opção 2.2: pode ser que você chegue parindo, com o bebê coroando. Esse obstetra “fofinho” não sabe acompanhar um parto fisiológico e muito provavelmente vai correr pra fazer uma episiotomia ou colocar um sorinho ou qualquer intervenção de rotina desnecessária sem nem perguntar a você nada.
            Opção 3: ou o médico do plantão. É importante dizer que chegar em trabalho de parto é visto de maneira muito esquisita pela maioria dos plantonistas. Obviamente eles querem logo passar o caso pro obstetra que acompanha o caso. Ou “acabar logo com tudo isso” pra não passar o plantão com trabalho pro outro plantonista. A gestante parece uma espécie de batata quente e o parto um evento que precisa ser terminado logo e aí... dá-lhe intervenções. Prestar uma assistência padrão ouro, discutindo condutas e respeitando autonomia e protagonismo feminino é bastante difícil pela rotina que o hospital segue e pela própria formação dos profissionais da assistência que lá estão.

Pode até ser que você conheça alguém que chegou parindo e que conseguiu um parto natural no hospital do convênio. Essa mulher é bastante sortuda, ou seja, correu um risco significativo de ter uma experiência de parto negativa.

Mas além de se preocupar com o parto em si, é importante também saber das intervenções no recém-nascido, que, na assistência hospitalar de rotina ainda são bastante invasivas.
Enfim, todas essas opções me parecem bastante ruins. E hoje, compreendendo o funcionamento dessa indústria milionária, eu não me submeteria nem ao pré-natal e nem à assistência ao parto com um médico do convênio. Simplesmente não compactuo com esse modelo. Apesar de ter plano de saúde privado, tenho utilizado apenas para fazer exames solicitados pela minha equipe. E me privado de muitos incômodos como esperar horas para ser atendida para uma consulta ridiculamente curta, sem olho no olho. Esse sistema faliu e eu não compactuo com ele. Ele é violento pra todo mundo. Enquanto nós mulheres não criarmos novas demandas, enquanto os profissionais não se organizarem para melhores condições de trabalho, enquanto a questão for tão mercadológica e egóica, acredito que a mudança vá ser bem morosa.
Pré-natal humanizado, com participação da família e atenção integral gestante

A realidade da assistência pública

Eu sou apaixonada pelo projeto do SUS. E até tentei fazer o pré-natal por ele quando cheguei a Brasília. Mas o caos estava instalado, profissionais em greve e muitos outros problemas decorrentes de uma má gestão. Na primeira gestação eu fiz pelo SUS em Parnamirim (RN) e gostei bastante. As enfermeiras eram super atenciosas, apesar das palestras serem bem ruins e tratarem as gestantes de maneira infantilizada, o que também constatei aqui em Brasília. Como a qualidade do pré-natal no posto de saúde estava bem ruim, resolvi incluir no pacote da minha equipe.

Apesar de ter um índice menor de cesarianas, cerca de 40%, o parto com intervenções ainda é a realidade da assistência ao parto no SUS. Isso significa que mesmo não caindo numa cesariana mal indicada (de acordo com as evidências científicas), eu entraria na escala de produção do parto normal que consiste num pacote de intervenções que comprovadamente tem um impacto negativo no desenvolvimento do parto fisiológico e que são inclusive contra p que preconiza a Organização Mundial da Saúde tais como: uso de ocitocina de rotina, episiotomia (ainda mais sem o consentimento da gestante), limitação da escolha da posição para parir (a imensa maioria dos obstetras dos hospitais públicos colocam a mulher naquela velha posição de litotomia com a barriga pra cima, pernas naqueles apoios (muitas vezes amarradas), entre outras condutas de terrorismo psicológico e outras cositas más que são conhecidas também como violência obstétrica.

Saindo do modelo de assistência hospitalar, eu teria a opção de uma casa de parto, se não fosse minha cesárea anterior. No protocolo de assistência na Casa de Parto de São Sebastião (DF), não são acompanhados partos vaginais de mulheres com cesariana prévia. Apesar de já existirem estudos recentes mostrando que o índice de ruptura uterina não é significativamente maior em partos vaginais após cesarianas. Enfim, na Casa de Parto tenho certeza que conseguiria uma assistência humanizada e minha autonomia respeitada. Mas já não era uma opção... então me restou o hospital de referência. Que eu teria que parir com quem tivesse de plantão. Só que a dinâmica de um hospital é muito diferente do de uma casa de parto. É um risco muito grande que eu decidi não assumir como plano A. Mas definitivamente é meu plano B. No SUS, com as portarias do Ministério da Saúde e outros fatores (como o funcionamento real de uma ouvidoria) eu me sinto bem mais acolhida e com uma possibilidade maior de conseguir um parto sem intervenção principalmente se mostrar que conheço meus direitos. Infelizmente, essa é uma realidade que já escutei e presenciei inúmeras vezes: acompanhantes e mulheres informados dos seus direitos, que chegam com plano de parto e doula são tratados com um cuidado maior, infelizmente pelos motivos errados medodeserprocessado. Fico mais tranquila até em relação aos procedimentos com o bebê, já que as novas portarias regulamentadoras vão de acordo com o que a humanização do parto preconiza: pele a pele imediatamente, amamentação na primeira hora, alojamento conjunto, clampeamento tardio do cordão umbilical. Na minha experiência percebo um maior respeito a isso quando o profissional percebe que a mulher é informada e discute a conduta.

O panorama do Brasil: a violência obstétrica

Desde que ressignifiquei a experiência negativa com o primeiro nascimento, me tornei uma ativista mais forte e mais compreendida acerca do contexto em que fui violentada e que 25% das mulheres brasileiras relatam ser.

Um quarto das mulheres brasileiras relatam terem sofrido algum tipo de violência durante seus partos. E tenho certeza que esse número é muito maior, porque muitas mulheres não compreendem que foram violentadas, já acostumadas a um modelo de assistência tão violento e a serem tão submissas. A imensa maioria delas apenas guarda um sentimento negativo em relação ao parto. Sentimentos que geralmente são passados para as próximas gerações ao dizer que hoje em dia a mulher não precisa sofrer, que parto dói muito entre outras coisas que estão em nossa memória coletiva de uma maneira muito forte e que não fortalece as mulheres, apenas perpetua um modelo de submissão e de sofrimento em relação ao parto e ao nascimento.

Já aconteceram inúmeras vezes: eu começar a falar sobre violência obstétrica e alguma mulher começar a chorar por se reconhecer nos sentimentos ou relatos que escuta. Inúmeras vezes. Ou por falar em episiotomia e mutilação feminina e muitas começarem a perceber que se sentiram assim e pensarem que era assim mesmo, que a dor pra sentar, pra ter relação sexual era algo normal. E em todas ficarem absolutamente maravilhadas como um parto pode ser bonito, ainda que dolorido. Em como a dor das contrações pode ser ressignificada. Em como é possível até mesmo ter orgasmos durante o parto. A maravilha é perceber outra possibilidade, muito mais bela e simples, bem ali.

Onde eu puder minimizar os riscos de passar por violência obstétrica novamente, eu o farei. Lutando contra um sistema posto, contra achismos de todos ao redor, por um parto digno e respeitoso.

O valor de um parto

Para mim não importa quanto fosse. Conversei com algumas equipes humanizadas, com doulas e fiz minha escolha. Muito mais baseada em empatia do que em valores. Expliquei explicitamente para todas envolvidas a situação da gravidez, a dificuldade financeira de não ter uma reserva que pudesse ser usada para isso naquela hora, mas deixei bem claro que faria tudo que estivesse ao meu alcance para conseguir. E a equipe foi super parceira em facilitar o máximo possível as condições de pagamento.

E tenho feito.

Economizamos bastante, deixamos de fazer muitas coisas, buscamos alternativas mais baratas, vibrei abundância em todas as minhas meditações, percebi o que poderia oferecer para trocar com as pessoas por dinheiro para ajudar a pagar minha equipe. Nesse processo está sendo fundamental o apoio das amigas e da família e da virtualidade. Tem sido uma construção coletiva muito bonita e sou pura gratidão a todas as pessoas que tem nos ajudado. No próximo post vou detalhar exatamente o plano que tracei para conseguir o dinheiro pro meu parto, do zero.

O valor de um parto pra mim não é um valor plástico, material. É um investimento: pra mim, pra minha família e pro mundo. Acredito de verdade que podemos mudar uma sociedade deixando imprints de amor e de acolhimento em quem chega ao invés de frio e solidão. Força de vontade, fé de que vai dar certo e movimento para fazer as coisas acontecerem são coisas muito importantes para viabilizar algo assim.Contar com amigos e família também é essencial. Ter conseguido quase a metade do valor total até agora já me mostra mais uma vez que juntos somos bem mais fortes! E que nada é impossível, por mais que pareça difícil.



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